No dia 15 de setembro de 2021, cerca de seis famílias mbya guarani recriaram aldeia em território ancestral indígena no município de Cachoeirinha, guiadas pelos sonhos do Karai Alexandre Acosta, ancião e liderança espiritual do povo guarani. A área é conhecida como Mato do Júlio pelos jurua (não indígenas) e fica à beira do rio Gravataí e da rodovia BR-290 (Freeway), contando com mais de 300 hectares de mata nativa. Em guarani, o local é conhecido como Karanda’ty, “mata das palmeiras karanda”, espécie típica da região e que agora dá nome à aldeia. O Mato do Júlio é uma das últimas áreas com remanescentes de mata atlântica às margens do rio Gravataí em seu trecho próximo à foz, no delta do Jacuí, encontrando-se cercado pela expansão da região metropolitana de Porto Alegre. Nos últimos anos, herdeiros do antigo latifúndio e empresários do ramo da construção vêm buscando destruir esse remanescente de mata nativa para viabilizar a construção de empreendimentos urbanos na área. Seus projetos encontram resistência ativa da população de Cachoeirinha, sobretudo do coletivo Salve o Mato do Júlio, que luta pela preservação do patrimônio natural e histórico da região.






A região é tradicionalmente ocupada pelo povo guarani. De um modo geral, a bacia hidrográfica do rio Guaíba conta historicamente com um complexo interligado de aldeias indígenas. As duas margens do rio Guaíba e o delta do Jacuí contam com presença ancestral e contemporânea de diversos aldeamentos: em Charqueadas, Eldorado do Sul, Guaíba, Barra do Ribeiro, Mariana Pimentel, bem como em Porto Alegre, Viamão, Capivari do Sul, e assim por diante. O rio Gravataí, em específico, também está ligado ao território histórico guarani. Antes mesmo do surgimentos dos municípios da região metropolitana e da própria cidade de Porto Alegre, mais especificamente em 1757, a comandancia responsável pelas fronteiras pós-tratado de Madrid ordenou a fundação de uma grande aldeia na região para abrigar 600 guarani oriundos dos Sete Povos das Missões, que veio por tornar-se a histórica Aldeia dos Anjos, fartamente documentada na historiografia oficial do Rio Grande do Sul. Essa antiga aldeia chegou a ocupar 13 mil hectares no local onde posteriormente foi fundado o município de Gravataí, do qual posteriormente emancipou-se Cachoeirinha, abrangendo portanto a área atual do Mato do Júlio. A Aldeia dos Anjos chegou a contar com população superior a 2500 indígenas na segunda metade do século XVIII, até o seu declínio e extinção oficial no ano de 1860. Esse fim “oficial”, contudo, não representou um abandono territorial por parte do povo guarani, antes pelo contrário. Nos aldeamentos oficiais os indígenas eram compelidos à assimilação cultural forçada, visando sua dissolução étnica na sociedade brasileira, de modo que o êxodo das Reservas Indígenas, Toldos e aldeamentos, àquela época, consistia justamente numa estratégia de resistência, liberdade e autodeterminação. O modo guarani de habitar seu território tradicional dependeu muitas vezes de intensa mobilidade e da ocupação de fragmentos de mata nativa, em constante esquiva das dinâmicas de expansão colonialista. Foi assim que diversos grupos mbya guarani seguiram habitando as matas das margens do rio Gravataí ao longo do século XX e nas últimas décadas, até que as famílias que hoje se encontram na tekoa Karandaty finalmente reivindicassem seus direitos constitucionais.
A luta para tanto tem sido árdua. Desde a recriação da aldeia, os supostos proprietários vêm buscando expulsar as famílias guarani de suas terras com uma tropa de advogados e incessantes pedidos judiciais. Organizações de apoio aos povos indígenas, por outro lado, vêm atuando no esforço de garantia dos direitos territoriais dessa comunidade, em contexto dificultado pela omissão processual da Funai, à época sob a gestão anti-indígena de Marcelo Augusto Xavier, que negou-se a defender até mesmo o direito indígena de reivindicação territorial. Em meados de 2022, a comunidade encontrava-se seriamente ameaçada de despejo pela ação de reintegração de posse impetrada por uma empresa interessada na área. Em articulação junto à assessoria jurídica da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) e do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), bem como com a Defensoria Pública da União (DPU), a Aepim e o Laboratório de Antropologia e Etnologia (LAE) da UFRGS elaboraram laudo antropológico preliminar apontando os inúmeros indícios de tradicionalidade da Terra Indígena: o parágrafo anterior deste texto é uma breve e pequena amostra das evidências reunidas. Essa ampla articulação logrou reverter duas decisões judiciais contrárias às famílias guarani no TRF-4, incluindo uma liminar de reintegração de posse, auxiliando a comunidade indígena a prosseguir sua luta em condições menos desfavoráveis. Atualmente as famílias guarani seguem na área fortalecendo sua aldeia, suas roças e seu modo tradicional de vida, dando continuidade a luta de seus ancestrais pelas suas matas sagradas.
A luta por direitos segue firme na Retomada Mbya Guarani de Mato do Julho, Cachoeirinha, RS